Só pra dar uma última sacudida na poeira!

Alô, doçura.

Há quanto tempo não apareço por aqui!

De todo modo, estou só de passagem. Não tem por que me alongar: ninguém visita mais urls estáticas como esta. Ou você está integrado às redes sociais do momento, ou é invisível. Este blog é invisível. Não tenho a dedicação, a disciplina ou a paciência para ficar divulgando cada peido que solto nesta página, reiteradas vezes, de modo a garantir uns míseros cliques, ainda menos leituras e, quando muito, um comentário.

Não que comentários sejam fundamentais para qualquer coisa. Pelo contrário: geralmente me desestimulam. As pessoas dizem muita merda…

Sim, eu também digo muita merda, mas as minhas merdas são minhas. É tipo peido: você aceita cheirar o seu, foda é ter que aturar o dos outros.

Enfim.

Nesses reinos das redes sociais, não sei se você ficou sabendo, aí na sua ilha deserta que por acaso tem internet mas só acessa o wordpress, enfim, nos reinos das redes sociais alguns bilionários do barulho estão aprontando altas confusões (no mundo real também, e principalmente, mas para isso, aparentemente, quase ninguém dá importância).

Assim sendo, um deles comprou um serviço de microblogging (microblogging é igual a isso aqui, mas micro). Comprou *O* serviço. Do português O SITE INTEIRO. Manja? Então. Comprou. E aí começou a fazer o que bilionários fazem: cagar o negócio.

E ninguém tá gostando das cagadas dele. Só ele. Lembra do que falei ali em cima sobre tolerar o peido dos outros e tal? Pois.

Aplica-se.

Desta forma, a plataforma que eu usava pra publicar as newsletters vai sair do ar, e eu tive que mudar pra outra. Por que eu estou falando disso aqui? Porque foi por isso que parei de trazer para cá os textos antigos da Newsletter. Fazia sentido quando, após enviar o texto, a política era “Quem recebeu, recebeu, quem não recebeu que se foda me peça.

Mas no serviço anterior, esse que vai sair do ar, tudo permanecia lá, à disposição para ser lido.

E no atual também.

Então eu não trago mais os textos antigos pra cá, e não tem por que publicar novos aqui, considerando… bom, o que eu já falei lá no começo.

Acho que essa é uma forma de dizer que ter um blog tornou-se anacrônico. Já era, mas piorou.

Não faz mais sentido alimentar isso. Esta página permanecerá aqui, claro, com os textos aí, é óbvio, para futura referência. Para os arqueólogos do futuro. Para a Wayback Machine.

Para o caso de eu, hora dessas, mudar de ideia.

Mas, até lá, deixemos esse pequeno reduto de ideias pobres e escrita torta em silêncio por mais um tempo. Certo?

Certo.

Se ainda não sabe, você me encontra em utops.substack.com. E clicando nesse link você consegue ler todo o arquivo do lugar. Se te interessar, sei lá.

¡Hasta, compadre!

[Newsletter 07] Do que poderia ser (mas não é!) uma defesa de Orvalho de Cavalo

Bater no Orvalho de Cavalo – e você sabe de quem eu estou falando ou, se não sabe, meu querido, tens minha estima, e até uma boa dose de inveja, continue assim – é uma tarefa fácil. O sujeito é de um simplismo intelectual risível, obscurantista até a medula em seus posicionamentos e tenta, de maneira canhestra, utilizar a filosofia como muleta para sua estupidez. É como borrifar verniz em uma pilha de bosta: vai brilhar, mas ainda é bosta.

Minha intenção não é tratar sobre este cidadão, mas sobre um dos ataques mais comuns feitos a ele, que considero igualmente desonesto por parte de quem o comete: a alegação de que o velhote não é e não pode ser um filósofo por não ter cursado faculdade de filosofia.

Antes de entrarmos nesta questão, é importante tirar da frente um argumento que surge em discussões dessa natureza: a alegação de que alguém que não cursou filosofia não é filósofo como alguém que não cursou engenharia não é engenheiro e alguém que não cursou medicina não é médico. Essa associação é absurda porque essas três áreas têm naturezas e finalidades tão distintas que a comparação entre elas, apenas por serem áreas de conhecimento ou cursos universitários, equivale a se comparar uma pedra e um cachorro apenas porque os dois são compostos de átomos ou porque os dois coexistem neste plano de realidade.

A filosofia é uma área cujo objetivo principal é o ensino do pensamento, suas limitações, armadilhas e potencialidades. É muito mais um exercício da capacidade intelectiva do que uma área de estudo com aplicação prática imediata. Não há e não pode haver um “tecnólogo em filosofia”. Além do mais, o uso da filosofia não incide diretamente sobre a vida e a segurança de outras pessoas. Não existem conselhos regionais de filosofia para validar seu pensamento, regras da ABNT sobre como pensar, normativas para analisar se seu fazer filosófico está ou não de acordo com as regras, órgãos para responsabilizar os filósofos pelo resultado de suas filosofagens. Qualquer movimento nesta direção seria imediatamente taxado como aquilo que é: coerção e censura. Com a medicina e a engenharia não é a mesma coisa porque, obviamente, um médico autodidata e um engenheiro por hobby têm potenciais destrutivos imediatos que um filósofo não tem.

Portanto, Orvalho de Cavalo não pode ser classificado como filósofo não por não ter concluído um curso acadêmico de filosofia, mas por ser incapaz de se questionar e demonstrar ser desprovido de senso crítico. Isto é tanto verdade que um seu “par”, na filosofia, na estupidez e na falta de honestidade intelectual tem graduação, mestrado e doutorado na área e mesmo assim é ofensivo a qualquer um que procura pensar com o mínimo de coerência que tal cidadão seja classificado como filósofo: Luiz Felipe Pondé.

Está lá, em seu currículo na Capes:

“Possui graduação em Filosofia Pura pela Universidade de São Paulo (1990), mestrado em História da Filosofia Contemporânea pela Universidade de São Paulo (1993), DEA em Filosofia Contemporânea – Universite de Paris VIII (1995), doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade de São Paulo (1997) e pós-doutorado (2000) em Epistemologia pela University of Tel Aviv.”

Pondé pode até saber – como Orvalho de Cavalo também sabe – mencionar obras de filosofia, filósofos, linhas de pensamento já estabelecidas e suas diferenciações, os traços marcantes das obras de Nietzsche, Sartre, Foucault, Heidegger, etc., etc., etc. Esse conhecimento, por enciclopédico que seja, não os habilita como filósofos. Quando muito como literatos – o que não é e não deveria ser considerado, a priori, como qualidade, e posso entrar nesse mérito depois. Ter o conhecimento sem saber como aplicá-lo é tão útil quanto ter uma máquina e não fazer a menor ideia de como operá-la, portanto ter conhecimento sobre a história da filosofia sem aliar a isso o pensamento crítico necessário para processar essas informações – e elaborar novos pensamentos à medida que a vida avança e os acontecimentos, sociais e particulares, se desenrolam – pode não ser de todo inútil, mas não é o suficiente para que essas pessoas sejam chamadas de “filósofos”.

Eu poderia elencar aqui diversos momentos em que Pondé se mostrou um boçal cujo discurso seria fácil de desmontar para qualquer aluno do primeiro semestre de filosofia com o mínimo de capacidade cognitiva, mas focarei em um, que tive o desprazer de assistir em um vídeo no LinkedIn, no qual o suposto filósofo questiona a necessidade da CLT, argumentando que brasileiros tentam migrar legal e ilegalmente para os EUA, país no qual não existe proteção trabalhista, mas americanos não tentam migrar para o Brasil de modo a serem protegidos pela CLT em suas relações de trabalho.

O nobre “pensador” parece considerar que os dois países são equivalentes, que suas economias são comparáveis, que suas estruturas sociais são semelhantes. O Doutor Filósofo não considera o fato de que a população brasileira (não apenas, claro, mas também) é bombardeada com a produção cultural norte-americana, que as estruturas de comunicação globais planificam a identidade cultural dos jovens conforme as tendências ditadas pelas economias dominantes, ensinando os valores, o modo de vida, os princípios dos americanos, em um fenômeno claro de colonização cultural, mas que o mesmo não acontece no sentido contrário. Os americanos sabem pouco ou nada sobre o Brasil. Não somos estudados lá, nossos filmes, nossas séries, nossas músicas não tocam por lá. Não aprendem a dançar o funk ou a curtir o sertanejo – o mesmo funk e o mesmo sertanejo que fazem não pouco uso de referências da música pop e country americanas –, não tomam caipirinha e não comem feijoada (nós tomamos Jack Daniels e comemos hambúrguer), não leem Graciliano Ramos e Ruben Fonseca, isso para ficar apenas na ponta do iceberg. Nós vivemos afogados na cultura deles, porque nosso dinheiro é interessante, mas eles não chegam a molhar o dedinho do pé na nossa cultura. Quiçá sabem do futebol e do carnaval, e olhe lá.

Então é desonesto perguntar por que os americanos não querem vir para cá, onde há leis trabalhistas, mas os brasileiros querem ir para lá, onde não há a mesma proteção. Os brasileiros que desejam ir para os Estados Unidos não estão nem aí para a proteção trabalhista ou não. Os objetivos são outros: são a massificação do consumo (conforme apregoado pela mídia americana), a suposta melhoria na qualidade de vida, a possibilidade de usar roupas e adquirir itens de marca, coisas que por aqui são sobretaxadas e proibitivas. Mas os brasileiros não são informados pela mídia nacional a respeito do inexistente sistema público de saúde americano, ou sobre os custos para se estudar numa universidade, ou sobre o crescente número de moradores de rua nas maiores cidades americanas. Sabemos inclusive muito pouco do mercado imobiliário gringo, ainda em colapso após a crise imobiliária de 2008.

Informações sobre a realidade da vida nos Estados Unidos não chegam até aqui, apenas a glamourização do consumo e do empreendedorismo. Perguntar “por que os brasileiros querem ir para os Estados Unidos mas os americanos não querem vir para o Brasil?”, nesse contexto, é tão desonesto quanto perguntar “Por que as pessoas tentam fugir de Cuba para os Estados Unidos, mas os americanos não tentam fugir para Cuba?”. Perceba: não significa que essas perguntas não podem ou não devem ser feitas. Mas, da forma como são apresentadas, são tentativas pobres de desarmar os críticos do sistema capitalista e do imperialismo econômico. São manifestações de ignorância de quem as emite.

É por causa desse tipo de incapacidade de reflexão que Orvalho de Cavalo não é um filósofo. É por causa desse grau de estupidez que Luiz Felipe Pondé não é um filósofo. Não tem nada a ver com academia, com estudo universitário, com nada disso: tem a ver com cognição, com o mínimo de honestidade intelectual.

É natural e justo que qualquer pessoa que pense um pouco sobre as coisas queira desmascarar esses boçais. Essa sanha combativa não justifica que se lance mão desse ad verecundiam. Escolaridade é importante, lógico, mas passa longe de ser sinônimo de qualificação ou direito a este ou àquele título. A ignorância e a burrice subsistem em todos os meios. Inclusive no acadêmico.

É fundamental ter isso bem claro e precaver-se contra isso.

Newsletter 01

Em 2019 comecei a enviar uma Newsletter que, tal e qual este blog, carece de regularidade. Sai quando tenho algo a dizer ou tenho a disposição para dizer algo (o que não é a mesma coisa, que fique bem claro).

A cada texto que publicar lá, trarei outro para cá. Hoje saiu o de número 18. Publico abaixo o de número 1.

Acredito que todo mundo já tenha feito aquela brincadeira de repetir uma palavra trivial diversas vezes, até que ela se quebra em uma sequência de fonemas estranhos, em um conjunto cru de sons, vazios de significado, e fica claro que é apenas isso: uns grunhidos aos quais nós, coletivamente, atribuímos sentido. Repetido à exaustão, este some e o significante se apresenta nu.

É um passo linguístico para trás. Mas, além disso, é um passo evolutivo para trás. Você reconhece seus grunhidos como aquilo que são. Não são diferentes de um miado ou de um latido só por apresentarem maior variação de vocalização. O que te diferencia dos outros animais é que suas manifestações sonoras permitem a apresentação de abstrações e não são, obrigatoriamente, fruto dos seus sentimentos e/ou necessidades mais básicas. Mas isso é tudo. Em termos básicos você é só mais um animal vibrando uma musculatura específica na laringe para se comunicar com outros da sua espécie.

…este sou eu começando esta newsletter chamando os leitores de animais. Juro que não é por mal. Tenho pensado muito no significado das coisas. Acho que estou numa fase existencialista (outra maneira de dizer “eu ando na merda” sem apelar de todo pra esse coitadismo).

A culpa (quero botar a culpa em alguém) é do Karl Ove Knausgard. Desde que li A Morte do Pai e identifiquei a estreita ligação que ele estabelece entre as pinturas que admira e a literatura, percebi que meu velho preconceito com o conceito de “semiótica” me tornou aleijado para determinadas análises e interpretações que são fundamentais a qualquer discurso, especialmente tratando-se de alguém que se propõe a escrever. Coisa à qual ainda me proponho, mas continuo achando que não deveria.

Essa minha resistência à vontade de escrever já foi mais por mim, por insatisfação com o produto dos meus esforços, com o resultado do que eu tentava rabiscar. Agora não tanto. Ou não apenas, na verdade. Agora também envolve enxergar a tonelada de informações às quais somos submetidos todos os dias. Existe para todos os gostos: fatalista, determinista, utilitarista, dadaísta, até… Escolha o que vai deixar seu cérebro mais confortável e vá em frente. Ao menos enquanto ainda existe um resquício de direito de escolha.

Sim, porque o direito de escolha é cada vez menor. Falei sobre isso no blog há alguns meses: nossa possibilidade real de escolha vem se tornando mais e mais reduzida, o que equivale a dizer que é cada vez maior nossa ilusão de que uma escolha existe. Haveria alguma espécie de revolta se fosse de outro modo, se esses filtros e bloqueios fossem declarados. Não são. São escamoteados, justificados por razões legais (que nada mais são do que argumentos de um ponto de vista financeiro). Ou atribuem a limitação a uma abstração: “o algoritmo”. O Algoritmo escolhe o que você verá na sua timeline do Facebook. O Algoritmo escolhe o que você verá na sua timeline do Instagram. Quanto tempo até o Algoritmo passar a escolher além disso?

Quanto tempo até o Algoritmo perguntar se você está feliz, cidadão?

Até chegarmos a isso, vivemos sob essa enxurrada de significados, significantes, textos, memes, vídeos, podcasts… é gente demais dizendo coisa demais. Precisamos de mais uma voz nessa algazarra? Preciso adicionar minha voz a essa azáfama? Em um ambiente de (dedo no cu e) gritaria, não é mais esperto ficar em silêncio?

Pode ser um receio válido, pode ser só eu dando à minha indolência uma roupagem de preocupação social (não nego, mas não confirmo). Mas é uma preocupação que me ocorre, especialmente na era das “fake news”, “pós verdade”, chame como quiser. É gente demais falando merda, quem me garante que eu não sou só mais um entrando no coro? A afirmação imediata que me vem à mente é “mas é gente demais mentindo e alguém precisa estar por aí falando a verdade”, e é puro ego: então agora o arauto da verdade sou eu? Daí caímos em Tabacaria: há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

De todo modo, recuso imediatamente essa proposição megalomaníaca. Não me levo tão a sério, e ninguém deveria. Não é que eu ache que minhas interpretações dos fatos e das coisas são tão válidas quanto a de qualquer um, óbvio. Existe gente burra e existe gente mau caráter por aí. Eu posso até errar, mas nunca por incapacidade ou com a intenção de desinformar (não que seja atenuante; imperícia, imprudência ou negligência nunca são, de acordo com nosso código penal).

Mesmo assim. Mesmo assim.

Daí a imagem que ilustra este post. A Escrita Assêmica (Asemic Writing), movimento artístico que eu desconhecia até poucas semanas atrás, trata de uma forma de “escrita de semântica aberta”, garatujas que podem, com alguma dedicação e esforço por parte de quem as observa, serem transformadas em linguagem, mas os símbolos não têm valor nenhum atribuído a priori. A determinação ou não de significados fica por conta do observador.

A técnica não é nova. Já era utilizada por um chinês por volta do ano 800 DC. Mas só foi nomeada em 1997. E vem ganhando notoriedade (ao menos de acordo com o Google Trends). Em uma era de informações em profusão, optar deliberadamente pela ausência de sentido não me ocorre tanto como uma forma de universalizar a comunicação, mas como um gesto de protesto.

Por uma questão de índole, talvez, essa perspectiva me agrada mais.
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  Pensei em comentar aqui sobre um vídeo do Pondé. Na expectativa de entrar no assunto sem, no entanto, chegar abrindo com ele, me desviei e fui tratar de outras coisas. Há também um texto da Cora Ronai a respeito do qual quero falar. Talvez fiquem pra edições futuras. Assim terei sobre o que escrever.
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A abordagem das questões (talquei?) nestes e-mails será, via de regra, assim: superficial. Talvez eu não vá a fundo por preguiça. Talvez porque não tenha muito fundo pra ir e eu esteja extraindo leite de pedra.

Talvez por incompetência da minha parte. Um homem precisa saber reconhecer suas limitações.

Jamais saberemos (desconfio que todos nós já sabemos).

Sula – Toni Morrison

O que eu mais gostei nesse livro da Toni Morrison (Sula, edição da Tag, cedida pela Cia das Letras, tradução de Débora Landsberg) é que a autora obviamente aborda questões referentes à existência de duas amigas negras vivendo nos Estados Unidos do início do século XX. O machismo, o racismo e a luta de classe estão lá, e são esferas com as quais elas entram em contato e com as quais precisam aprender a lidar.

Mas são isso: esferas. Não são determinantes sobre quem essas duas personagens são. Não são delimitantes ou classificações de suas personalidades. São o que são: fatores externos dos quais é necessário saber se esquivar ou, quando isso for inevitável, se defender.Uma amiga com quem falei do livro me segredou algo: que não tinha grande interesse sobre histórias de negros que tratam exclusivamente da questão racial, e se perguntou se isso não seria uma forma de racismo. E eu acho que não é. Acho que é, inclusive, o contrário. Explico por quê: histórias que reduzem, à esfera da opressão, indivíduos de grupos oprimidos desumanizam essas pessoas e naturalizam uma situação que deveria ser circunstancial, transitória. No momento em que você diz a uma mulher que não interessa aonde ela vá ou o que ela faça, que ela estará sempre sob o jugo do machismo, você poderia muito bem colocar cartazes do Grande Irmão em todos os cantos com a fatídica afirmação “EU ESTOU TE VENDO”. Se a opressão, a miséria e o sofrimento são condições fundamentais de determinados indivíduos, se são inescapáveis, de que serve a luta? Para que vale a militância? Qual é o fundamento dos levantes sociais?

Veja: isso não é o equivalente a enfiar a cabeça na areia e fingir que nada acontece, ou que está tudo bem. É exatamente o oposto: é reconhecer que seres humanos são maiores do que as amarras que as estruturas sociais tentam lhes imputar. Que não se trata de uma “mulher negra”, mas de uma pessoa. Que não se trata de um “homem gay”, mas de um ser humano. Que não é “uma pessoa trans”. É uma pessoa. E que todas essas pessoas têm, quando você não está lá, com sua sanha de julgar e validar (ou invalidar) os outros, suas existências particulares. Seus gostos. Seus hábitos. Em tudo genéricos e em tudo peculiares. Iguaizinhos aos meus, aos seus, aos de todo mundo que você conhece. É reconhecer o valor dos movimentos sociais dos quais esses indivíduos fazem parte, seu histórico de luta e sua busca por direitos, e, ao mesmo tempo, não circunscrever esses indivíduos a esses papeis sociais (aos quais eles já são insistentemente limitados tantas e tantas vezes…).

O problema da escrita militante, quando não está aliada a alguma inteligência, apenas ao que há de mais panfletário, é esse: a limitação desses atores a esferas que não são permanentes, que não são o “todo” de suas existências. São aspectos, lados, fatores. Como se, para além das opressões, aqueles indivíduos não existissem. Porém existem! E precisamos entender essas pessoas como pessoas, e daí, sim, virá a conexão que nos fará ver como a desumanização pela qual passam é monstruosa. A única maneira de fazermos as classes dominantes enxergarem isso é se a coisa toda for exposta de tal maneira que as classes dominantes possam SE VER nessa situação, sem qualquer caráter satírico, sem recorrer ao absurdo.

O que nos leva a uma outra questão, quando pensamos sobre o tipo de livro e filme a respeito de questões raciais que escapa da esfera da militância e chega às audiências brancas. Se é necessário dinheiro para produzir, distribuir e divulgar essas obras, e se o dinheiro, majoritariamente, está nas mãos da classe dominante, será que essas obras de fato responsabilizam a classe dominante e apresentam a situação dos perseguidos, dos oprimidos e dos enjeitados como sendo resultado de um conjunto de valores sociais seculares, datados, mutáveis?

Ou será que as obras que chegam até a gente, supostamente para nos mostrar as agruras pelas quais passam essas pessoas, não fazem nada além de naturalizar as condições desses indivíduos, e nos oferecer um falso sentimento de empatia, que não deixa de estar aliado ao conforto do pensamento “essa culpa eu não carrego, as coisas são assim porque assim precisam ser mesmo, não tem o que fazer”?

Enfim.

O livro de Toni Morrison não é desse último tipo.

E é por isso que precisa ser lido.

Altered Carbon

Altered Carbon tem uma ideia muito boa: a de que a consciência humana pode ser conservada em uma espécie de cartucho colocado na base do pescoço entre duas vértebras (não me lembro se a série especifica, mas acho que é em algum lugar entre a C3 e a C7).

Se o seu corpo (que eles chamam de “capa”, porque passa a ser somente isso) morrer, é só colocar o cartucho em outra capa e lá vai você tocar sua vida.

Considerando que vivemos numa sociedade capitalista, tudo isso é pago com dinheiro capitalista e controlado por empresas capitalistas e fiscalizado por órgãos do governo que nada mais são que braços do mundo capitalista mantendo a indústria capitalista de produção de capas. Cometeu um crime? Tiram você da sua capa (ainda que seja a original, na qual você nasceu). Seu cartucho vai pra prisão, sua capa entra em mercado. Quem puder comprar, leva. Se for vagabunda (porque você é feio, gordo, inábil, deficiente de alguma maneira, etc.), é oferecida gratuitamente a alguém que perdeu sua capa em um acidente ou coisa parecida e não pode pagar por uma nova.

A ideia é foda! As ramificações da ideia são interessantes, mas não saem da superfície. Algumas coisas são apresentadas e podem parecer manifestação de genialidade do cara que pensou no livro que deu origem à série (um tal Richard Morgan, que eu desconheço, mas de quem vou procurar mais coisas).

Mas esse lance de “as pessoas que não podem morrer porque têm TANTA grana que têm capas infinitas à disposição vão perder os limites e cometer mais e mais atrocidades, consigo e com outros, quando a morte deixar de ser algo definitivo” é um pensamento bastante óbvio nesse cenário.

O que NÃO é óbvio é que TUDO MAIS perde seu significado, porque TUDO MAIS deixa de ser algum tipo de mérito e passa a ser fabricável. Não pode haver doenças numa sociedade capaz de fabricar corpos (pra quem puder pagar por isso, lógico). Ideais estéticos? Por quê? Dá pra fazer qualquer coisa. Você molda um corpo “belo” como molda um corpo “feio”, e, assim, “belo” e “feio” perdem seus significados. Gênero? Que porra de gênero, colega? Você coloca seu cartucho no corpo que quiser. Sexualidade? Não seja ridículo, um conceito como esse mal e mal resiste à nossa sociedade, e as alterações que podemos fazer nos nossos corpos são bastante limitadas, pra não falar do nosso período de vida, então você acha que isso ia resistir por quanto tempo em uma sociedade na qual você pode ser colocado em qualquer corpo, e qualquer alteração é possível?

Então quando uma personagem é reencapada no corpo de um “homem” e estranha isso, e o marido dela também não fica confortável sendo tocado por outro homem… isso faz sentido HOJE, mas não faria sentido numa sociedade na qual a ideia de troca de corpo é trivial, pois passaram-se séculos desde que essa tecnologia se popularizou.

Questões de gênero, de cor, de raça, sexualidade, tudo isso DESAPARECE em um mundo no qual seja possível produzir corpos, comprar corpos, trocar de corpo quase instantaneamente… se o corpo deixa de ser uma limitação, ele não terá mais importância. Foi disso que eu senti falta na série, desse… desapego moral. Ou de uma moralidade nova, que fosse.

Mas uma coisa fica muito clara: as questões de classe ainda existem. E existem com mais violência ainda, já que o poder dos ricos passa a ser quase ilimitado. Você não pode ser preso, há um backup da sua consciência. Você não pode ser morto, existe um cofre com dezenas, centenas de cópias do seu corpo, todos ligados a esse backup, então mesmo que destruam o seu cartucho, tudo o que você perde são algumas horas de vida.

Você pode matar quem quiser. É só comprar uma capa nova pra essa pessoa. Pode cometer as atrocidades que quiser. Pode “comprar” uma consciência que esteja aprisionada por qualquer razão, reencapar e manter como um troféu. Se uma consciência é algo material, que pode ser transferido, manuseado, passa a ser um produto. Se corpos podem ser produzidos, passam a ser produtos. Tudo é produto. E nisso a série acerta muito bem. As questões de classe estão lá, mas sem o apontamento óbvio de que sim, o capitalismo é uma merda, e será uma merda ainda maior quanto menores forem os limites da existência humana.

Enfim. Pra quem não quer ser bombardeado com questões filosóficas, tem putaria, peitinho, piroca, bundinhas masculinas e femininas. E cenas de luta do tipo “massa, véio”.

E tem um personagem que é o Edgar Allan Poe.

Merece um sete e meio, vá lá. São só 10 episódios, até o momento. Tá na Netflix. Vai com fé.

Dos grilhões que não vemos (ou preferimos não ver)

O que nós tínhamos há coisa de duas décadas, se tanto? Um mundo de conteúdos filtrados e escolhidos para nós. Claro, ampliados com a popularização da TV a cabo – com seu maior número de canais – e da incipiente internet e o aumento de velocidade das notícias. Ainda assim havia gente por trás de tudo aquilo que líamos, ouvíamos e assistíamos decidindo o que iríamos ler, ouvir e assistir. Os editores, os responsáveis pelas programações das rádios e das TV estavam lá, determinando o que era ou não apto a ser veiculado, comercializado, passado adiante.

E nós aqui, sujeitos a esses filtros.

Daí, em meados da primeira década deste século, popularizou-se o conceito da “Web 2.0”. Uma internet de conteúdo mais facilmente produzido, veiculado e acessado. E não por grandes organizações, corporações, oligopólios da mídia tradicional, mas pelo cidadão comum. Eu e você. Escrevendo, fotografando, produzindo vídeos, podcasts, e, por meio de plataformas que surgiam às dúzias, compartilhando os produtos de nossa capacidade criativa com o mundo. E assim todos poderiam organizar os próprios feeds, certo? Eu consumiria o que queria consumir: nem mais, nem menos. Os canais de vídeo pelos quais optasse, os filmes que quisesse ver, os blogs e páginas que assinasse, os sites de fotografia que decidisse seguir, os portais de notícias que considerasse mais justos e/ou alinhados à minha visão de mundo e os podcasts e artistas que resolvesse escutar. Eu seria o senhor das minhas referências e, a partir daí, poderia limitar ou ampliar meu leque de influências conforme minha vontade.

Essa era a ideia.

Junto (ou graças) a essa ideia, a pirataria grassava. Baixávamos tudo. Filmes, séries, músicas, documentários, livros, quadrinhos, jogos… E apenas o que queríamos. Não havia mais barreira econômica, impeditivo financeiro ou a ditadura do organizador oculto que decidia ao que teríamos acesso e ao que não. Os jogos hentai produzidos no oriente não são vendidos no ocidente? Um americano que fala japonês cria uma Wikia com as informações básicas sobre o jogo. Um japonês sobe o executável da instalação num torrent, junto ao crack criado por um russo. Um neozelandês quebra o código-fonte e traduz os menus para o inglês. Um chileno escreve um passo-a-passo para você desbloquear todas as funcionalidades e não se perder na história do jogo. E você, brasileiro, pode alimentar seu fetiche maluco e bater sua punheta – não estamos julgando.

Esse modelo de negócios não casa com o que prega o capitalismo. E, em um nível micro, é compreensível: por trás de cada vídeo, cada filme, cada série, cada CD, cada música, cada podcast, cada fotografia, cada texto, há investimentos. Alguém que consumiu livros, que comprou equipamentos – lentes, câmeras, microfones, computadores, placas de vídeo, de rede -, softwares de edição, etc. O aprendizado online foi se tornando mais e mais possível, mas as ferramentas – físicas ou lógicas – ainda tinham seu preço, seu custo. Essas pessoas precisavam de dinheiro para continuar produzindo seu conteúdo e também para comer, ter onde dormir, usar roupas, etc. Nem tudo, afinal, era pirateável. Já do ponto de vista macro, existiam corporações, estúdios de cinema, grandes produtoras de jogos, editoras, a indústria fonográfica, todas elas e seus executivos e stakeholders duplamente ameaçados: primeiro porque o acesso do pequeno produtor (individual ou não) a seu público potencial já não dependia mais do dinheiro e dos canais de acesso monopolizados por esses caras, e assim os talentos da indústria podiam perfeitamente criar e manter público e prescindir da máquina de controle criada por esses sujeitos. Segundo porque, ao fim e ao cabo, eles não eram mais “donos” de nada: bastava um usuário minimamente safo com um computador ligado à internet e pronto, tome distribuição gratuita de “propriedade intelectual”.

Então as corporações começaram a brigar de volta. E entenderam, em certo ponto, que estavam brigando de forma errada. Estavam tentando cobrir o sol com a peneira, caçar todos os ratos de uma vez, acabar com os vazamentos, e esse não era o meio de vencer a briga. A briga só poderia ser vencida se o capitalismo fizesse o que o capitalismo faz melhor: pegasse essa contracultura da universalização do acesso e transformasse em um produto, ao mesmo tempo em que combatesse os grandes canais de distribuição gratuita (os sites de torrent e as plataformas de p2p). E assim chegamos ao atual modelo de streaming.

Agora ainda podemos decidir ao que assistir (Netflix, Hulu), o que ouvir (Spotify), o que ler (Kindle Unlimited), o que jogar (Steam), mas voltamos àquela velha limitação: há alguém que seleciona o que vai e o que não vai para os catálogos desses serviços. O que eles podem e o que eles não podem disponibilizar para você. Mas ei, calma lá. Ainda existe o YouTube, ainda existe o Facebook, o Instagram. Suas timelines estão cheias de conteúdo que você opta por ver ou não ver, certo?

Certo?

Errado.

Agora há um algoritmo que decide o que você vai ou não vai ler. Certos posts sequer aparecem pra você, não importa se foram publicados por aquela conta que te interessa mais do que todas as outras. Você até escolhe quem vai seguir, mas isso não garante que você receberá tudo o que for publicado. Quanto ao Instagram, então, nem se fala: a organização das fotos na timeline é aparentemente randômica, o acesso é sistematicamente podado pelo sistema de modo a forçar os usuários do serviço a optar pelos “posts patrocinados”, ou seja, postagens que, uma vez pagas, são exibidas para uma porrada de gente, que segue e que não segue a conta responsável. Então sua timeline passa a ser assim: em parte formada por aquilo que o algoritmo permite que você veja, em parte formada por aquilo que ele vai te mostrar porque foi pago para isso, mesmo que você não tenha o menor interesse no assunto. Resumindo melhor: ele te mostra parte do que você quer ver, e muito do que você não tem interesse em ver.

E quanto às plataformas de streaming? Sim, você pode ver os filmes da Netflix e ouvir as músicas no Spotify. Enquanto estiverem lá. Os filmes e as músicas podem (e são) retirados do ar de tempos em tempos. Apenas recentemente, ao usar o Spotify na minha TV, pude constatar a quantidade de músicas das minhas playlists que foram removidas do sistema (e agora estão indisponíveis para mim). Ou seja, podemos optar, pero no mucho. Temos escolha dentro dos limites (ideológico, financeiro, etc.) da empresa que nos oferece o material. É uma empresa, afinal. É uma empresa. Não são pessoas, não buscam a universalização do acesso, a distribuição por princípio, nada disso. É tudo uma questão de lucro e é assim que as decisões são tomadas: como dá para fazer dinheiro?

Conseguiram fazer com que retroagíssemos para esse cenário de possibilidades limitadas, predeterminadas por terceiros, de uma forma ainda mais grave: nos dão a ilusão da escolha. Mesmo vindo daquilo que optamos por ver, mostram apenas o que decidem que nos interessa. E do que postamos, ocultam (às vezes até mesmo excluem) alguma coisa sem nos consultar ou avisar. Definem as normas, alteram as normas e não podemos recorrer ou questionar, pois não existem canais para essas coisas.

Por mim voltaríamos aos blogs, aos downloads de filmes, séries e MP3, ao Fotolog, às timelines organizadas exclusivamente de forma cronológica e, ainda que sigamos milhares de pessoas e a linha do tempo seja uma zona, uma cacofonia de dezenas de milhares de posts por hora, que seja: é a nossa zona, a zona que escolhemos, a zona que queremos, e nada além dela. Nosso caos particular. Mas esse cenário não voltará. Não é lucrativo e não nos mantém manipuláveis. E nós não vamos abrir mão das nossas redes sociais em protesto, não vamos mexer no bolso das empresas que insistem em nos tratar como crianças.

Imagina só se faríamos isso? Como viver sem poder publicar uma foto diária do nosso almoço, nossos stories cantando bêbados na balada?

Que espécie de barbarismo é esse? Oras.

Espártaco e as Inimigas

(Este texto é uma republicação de um conto que publiquei no Wattpad há alguns anos, caso eu venha a deletar minha conta de lá)

Espártaco levantou-se, a água pingando do queixo quadrado, grossas gotas ainda presas em concavidades e antigas cicatrizes marcadas no rosto áspero por anos de uma existência violenta. Quantos anos? Não sabia. Há quanto tempo ausentara-se da Trácia? Não se lembrava. Essas coisas não eram importantes, de todo modo. Enxugou o rosto em um pedaço de pano oferecido pelo pajem. Tinha pajens, agora, o escravo revoltoso. Seguiam-no de bom grado, ainda que a revolução caminhasse para um desfecho terrível. Comandava quinze mil homens. Vinte mil, talvez. E pensar que, há quase três anos, saíra de Cápua com setenta outros escravos, revoltosos como ele, cansados das crueldades e dos desmandos de Batiato.

Ouvia o vento que soprava sobre a planície às margens do Sele, onde seu grupo acampava. Via as tochas e os fogareiros agonizantes entre as barracas de seus companheiros. Não era um exército, apesar de, no decurso da revolução, terem vencido cinco Legiões em confronto direto. Mas Crasso cercava-os agora. Comandava seu próprio exército, além do que restava das Legiões consulares, soldados previamente derrotados pelos escravos, ansiosos por vingança. O sol despontava sobre as colinas da Lucania. Lúgubre, Espártaco estremeceu.

Não havia nada a fazer além de aguardar, afinal. Ele sabia que os homens de Crasso construíam uma trincheira ao norte, mas vinha evitando as escaramuças. Seu próximo ataque deveria ser direto, visando o coração do exército inimigo. Derrotar apenas agrupamentos não seria eficaz, já que os números invertiam-se: cinquenta mil soldados inimigos, quase três para cada homem de seu exército. Preocupava-se. Mas estava cansado. Passara a noite em vigília, em companhia às sentinelas. Foi até sua barraca, decidido a dormir um pouco.

O sono veio, manso e suave, sem sonhos ou agitações de qualquer ordem. Então despertou com alguém que o chamava, tocando-o levemente no ombro.

— Senhor. Senhor. – reconheceu a voz do pajem. Abriu os olhos, ergueu-se, de má-vontade.
— O que é, Claudius?
— Soldados romanos, senhor. Aproximando-se ao norte.

A informação foi o bastante. Espártaco saltou de seu catre, amarrando o cinturão da bainha e disparando ordens contra o ajudante.

— Rápido, Claudius, ajude-me a vestir minha armadura.

O jovem, também sem perder tempo, aproximou-se e ajudou seu senhor a amarrar as tiras de couro que ligavam as duas placas de bronze destinadas a proteger o peito e as costas do combatente. O bronze estava fosco e, aqui e ali, ainda exibia manchas de sangue que resistiram às sessões de limpeza à base de areia e azeite.

O gládio seguro na cintura, a loriga firmemente presa ao torso, o ex-gladiador abandonou a tenda e encaminhou-se ao limite do acampamento. Muitos homens já estavam lá; outros, ouvindo os gritos de alarme, dirigiam-se à posição de batalha. Alguns reduziram o passo a fim de acompanhar seu general. As fileiras se abriram para permitir a passagem de Espártaco, seus homens bateram espadas em escudos em comemoração à chegada do líder. O Trácio não disse nada. Acenou brevemente para seus companheiros, virou-se para medir as forças inimigas. Uma Legião se aproximava, tomava todo o amplo vale à frente. Milhares de homens. Estimou pelo menos quarenta mil. Seria uma batalha difícil…

Um cavaleiro se adiantou das fileiras romanas. Vinha com as mãos erguidas, em demonstração de paz. Espártaco caminhou à frente, o homem a cavalo chegou até ele.

— Venho da parte de Cneu Pompeu Magno. Ele gostaria de falar com o líder deste exército. – mediu o homem que o falava. Era um pajem, também, via-se pelo porte e pelos modos.
— O que o grande Pompeu tem a tratar com um simples escravo revoltoso?
— Isso eu não saberia dizer, senhor. Ele apenas me pediu para trazer a mensagem.

Espártaco ponderou por um instante. Decidiu aceitar.

— Pois diga a ele que venha. Será bem-recebido.

Pompeu adentrou a tenda à qual foi conduzido. Sua armadura era preta, fosca, finamente trabalhada. Trazia na mão uma gálea de prata, com bordas de ouro e encimada por penachos azuis. Em sua cintura pendia uma bainha de couro escuro, pontilhada por rubis e safiras. Vinham, com ele, dois Legionários portando lorigas brilhantes, invejavelmente polidas. Sentaram-se, tendo o líder ao meio.

— É uma satisfação conhecê-lo, Espártaco.
— Digo o mesmo, grande Pompeu, mesmo sabendo que estamos de lados opostos desta guerra.
— Pois era essa a questão que eu gostaria de discutir com você.
— Se seu plano é pedir por rendição, adianto que não nos renderemos. Morreremos livres ou morreremos lutando.
— É aí que você se engana, meu caro: não vim aqui solicitar rendição. Vim aqui pedir autorização para juntar a força de minhas Legiões ao seu exército.

Espártaco hesitou por um instante. Teria ouvido corretamente? Pompeu, o Grande, após vencer a guerra na Hispânia, oferecia suas tropas? Pretendia juntar-se a ele?

— Juntar-se a nós?
— Exatamente.

O Trácio permaneceu em silêncio por algum tempo. Pompeu continuou.

— Entendo suas ressalvas. Minha iniciativa de juntar-me a você pode parecer algum tipo de estratagema do Império para acabar com sua revolta por dentro, mas não existe razão para esse tipo de artimanha. Primeiro porque já está muito claro para mim – e, acredito, para você também – que nossas Legiões são mais numerosas do que seu exército. Somos, juntando as tropas de Crasso, as Legiões Consulares e minhas Legiões, quase cem mil soldados. Vocês são, quando muito, quarenta mil. Não há necessidade para ardis quando poderíamos apenas marchar até aqui e esmagá-los. – tal manifestação de força levou Espártaco a franzir o cenho. Pompeu mudou a direção do discurso, a fim de tranquilizá-lo:

— O que eu quero, e o ponto no qual concordamos, e que me traz até aqui hoje, é lutar por uma Roma livre. Uma sociedade na qual não haja escravos. Sou, como você, a favor da igualdade entre os homens. Além do mais, não concordo com Crasso, com suas ideias e com seus métodos. Eu jamais lutaria ao lado de um homem de quem discordo essencialmente, e contra uma causa que me parece justa. Estamos do mesmo lado, portanto. Aceite minha ajuda. Seria uma honra para mim.

O ex-escravo coçou o rosto, sobre o qual a barba se anunciava, insipiente. Sua voz veio permeada de desprezo.

— Grande Pompeu, você já foi um escravo?
— Nunca.
— Já esteve aprisionado, acorrentado, já foi considerado menos do que um homem, tratado como uma criança… não, menos ainda: como um animal, como algo desprovido de vontade ou de razão?
— Não, nunca passei por isso.
— Sempre foste, tu, ó, Grande Pompeu, respeitado sendo quem é, ouvido e considerado entre teus pares.
— Sempre, e não há razão para ser irônico. Além do mais, minha posição confortável não me impede de reconhecer uma injustiça, e reconheço a injustiça que é a posição de escravo. Um homem não devia precisar prostrar-se diante de outro.
— Mas você nunca teve que se prostrar diante de ninguém.
— Não, não tive.
— Você é um dos opressores, então, nunca um oprimido.
— E o que isso tem a ver?
— Tem a ver que você, do alto de seus privilégios, vem até aqui, até um grupo de escravos, se oferecer para nos ajudar. Pretende o quê? Ser nosso igual?
— Não! Minha ideia é que vocês sejam meus iguais!
— Ah, porque agora você é melhor do que a gente?
— Espártaco, do que você está falando, afinal? Você tem um objetivo: a libertação dos oprimidos. Eu estou aqui com os meios para te ajudar a atingir seu objetivo. Por que, de repente, sou seu inimigo, e não seu aliado?
— O que você quer é tomar posse do nosso movimento!
— Não quero “tomar posse”, quero ser parte do seu movimento.

Levantando-se, Espártaco chutou uma ânfora que repousava a seu lado.

— O que você quer, seu opressor maldito, é roubar nosso protagonismo!

Pompeu permaneceu calado, boquiaberto diante da atitude de seu interlocutor. Um dos Legionários interveio, dirigindo-se ao Trácio.

— Comandante, eu já fui um escravo. O General Pompeu me libertou. Ele é um homem bom e justo! Ouça-o!
— Oh, o Grande Pompeu! Vamos todos idolatrar e nos curvar diante do maravilhoso Cidadão Romano que não faz mais do que a sua obrigação ao libertar um escravo de seus grilhões!

Visivelmente decepcionado, Pompeu levantou-se, por fim.

— Você, então, recusa minha ajuda?
— Mas ainda não ficou claro? Você pode ser um dos nossos aliados, nunca um dos protagonistas do nosso movimento!
— Espártaco, isso não faz o menor sentido…
— Ah, vai chorar, agora? Eu tomo banho nas suas lágrimas de cidadão romano!
— Qual a necessidade disso?
— Oh, coitadinho do cidadão romano, oprimido pelo escravo mau!
— Tudo bem, Espártaco. Que assim seja. Não tomarei parte na batalha. Não lutarei a seu lado, porque você não deseja minha ajuda. E não lutarei ao lado de Crasso, pois considero-o um crápula. Boa sorte com sua revolução. Julius, Tiberius, vamos embora. Argumentar aqui é impossível!

Com um aceno, Pompeu deixou a tenda, seguido por seus dois soldados. Espártaco permaneceu onde estava, resmungando.

— Onde já se viu, um Cidadão Romano, pleno de direitos, querendo se unir ao nosso movimento. Querendo roubar nosso movimento, querendo fazer parte…

Dois dias depois, Espártaco e seus homens foram massacrados pelas tropas de Crasso.

Das Crônicas

(Este post é uma republicação de um que havia no meu blog anterior, e do qual gosto tanto que resolvi trazer para cá.)

A Cidade Vazia é um apanhado de crônicas da época em que Fernando Sabino vivia nos Estados Unidos, e não tem muito do humor sutil de mineiro que caracteriza outros de seus livros, tais como O homem nu ou A falta que ela me faz. Deixa transparecer uma boa dose de melancolia, talvez resultado da solidão decorrente da vida no exterior. É neste livro, entretanto, que se encontra minha crônica favorita do autor. Vou transcrevê-la aqui, ainda que sob pena de quebrar algum tipo de lei de direito autoral ou coisa que o valha, então deixo claro que o texto que segue não foi escrito por mim, dele não tiro quaisquer proventos e sobre o mesmo não tenho nenhum direito. A publicação é mera homenagem, e me prontifico a retirá-lo do ar se sua transcrição neste blog porco lesar, de qualquer maneira, os responsáveis pela obra.

Estendendo um pouco mais este preâmbulo, adianto que redigitei o texto na íntegra, ipsis literis, com todas as quebras de linha, vírgulas e acentos em palavras não mais acentuadas. Tanto por respeito ao formato original quanto em protesto contra a tal nova ortografia.

O Juramento

Melvin C. Roberts, canadense e secretário do conhecido milionário americano Cornelius Vanderbilt Junior, suicidou-se aos 27 anos de idade.
O comitê de investigações encarregado de esclarecer as circunstâncias do suicídio concluiu, depois de ouvir Vanderbilt, que o rapaz teve aquêle fim “como resultado de sua tormentosa experiência”.
Que experiência foi essa? O próprio Vanderbilt, no seu esclarecimento, nos dá a resposta. E de repente Melvin C. Roberts deixa de ser mero nome perdido na seção obituária dos jornais, lembrança a apagar-se com o tempo entre parentes e amigos, acontecimento cotidiano no registro policial. Já não se trata de simples tragédia doméstica que deixará atrás de si uma pobre mãe desconsolada e uma noiva desiludida. Nem ficará sendo apenas um momentâneo aborrecimento para o milionário Vanderbilt, que terá de procurar nôvo secretário.

No dia 9 de agôsto de 1945, um campo de concentração no Japão foi libertado pelas fôrças americanas. Entre outros, oito homens maltratados e famintos tinham escapado à morte lenta das torturas diárias, depois de quatro anos de cativeiro. Eram dos mais antigos, e milhares que com êles entraram naquele inferno jamais chegaram a sair. Tinham todos pouco mais de vinte anos, mas o sofrimento vivido em comum lhes deu outros vinte. Juntos suportaram a fome, o excesso de trabalho, a humilhação, o mêdo e a desesperança. Foram finalmente selecionados como cobaias humanas para inoculação de doenças e experimentações de cirurgia. Conheceram, uma por uma, tôdas essas formas de sadismo que os jornais e o cinema já divulgaram, para o erguer de ombros dos céticos e a meia hora de mal-estar dos temperamentais. Já não temiam a própria morte: temiam que o mundo não soubesse colhêr dela ensinamento algum, que o mundo não merecesse aquêle sacrifício. Então fizeram um juramento: se por milagre saíssem de tudo aquilo com vida, se recusariam a viver, caso não fôsse possível um mundo pacificado e feliz.

Nunca mais se encontraram. Dispersaram-se pelos quatro cantos do mundo, experimentando recomeçar a vida. Com o fim da guerra as nações se reuniram, tentando consolidar a paz. No mundo haveria agora oportunidade igual para todos, sólida esperança ligaria todos os homens, o mêdo e o ódio não resistiriam às novas formas de viver que se ofereciam. Assim era o mundo no ano que se seguiu, quando, exatamente no dia 9 de agôsto de 1946, a crônica policial de uma cidade qualquer dos Estados Unidos registrou sem maiores detalhes, entre notícias de pequenos furtos, atropelamentos e agressões, o suicídio de um veterano de guerra.

Os homens às vezes se suicidam, veteranos ou não. Dizem que isso é natural. São os desiludidos da vida, os fracassados, e perfazem com seu “tresloucado gesto” um acontecimento normal de seleção na luta dos interesses, que o próprio desengano da vida se encarrega de explicar. É natural também que os veteranos tenham, como os outros homens, seus problemas íntimos para os quais vão buscar na morte a solução. Pouco tempo mais tarde, ainda em 1946, numa cidade da Inglaterra, outro veterano da guerra do Pacífico se matou.

E assim, sucessivamente, êles foram desistindo de viver. O suicídio de um rapaz no Estado de Nebraska coincidia com o de outro na Califórnia. Ninguém ficou sabendo por que num bar de Chicago um homem tomou veneno, ou no seu quarto de Filadélfia um homem deu um tiro na cabeça, ou numa colina do Maine um morto foi encontrado, ou nas águas do Rio Hudson um corpo se afogou. É possível mesmo que ninguém chegue a saber jamais como foi que êles morreram, nem quando, nem onde, nem por quê.

Na cidade do Reno, Estado de Nevada, Melvin C. Roberts, um rapaz de 27 anos, abandona o jornal sobre a perna, olha a noite pela janela de seu quarto e espera. Em que estará pensando? São dez horas da noite e lá fora a cidade parece calma, tranqüila, feliz. Homens e mulheres se encontram, se despedem, trabalham e descansam, vivem e morrem. Melvin C. Roberts pensa neles, pensa no tempo que passou. Pensa nos destinos do mundo, Melvin C. Roberts.
Levanta-se e caminha até a janela, como se tão vasto pensamento o obrigasse a receber de pé a brutalidade de suas conseqüências. O jornal deslizou para o chão, aberto na terceira página, e o nome familiar na pequena notícia se perde num emaranhado de letras. Êle ergue os olhos para o escuro do céu onde estrêlas esparsas mal se vêem, neutralizadas pelas luzes da rua. Parece tentar colhêr da noite um conselho, uma advertência. Mas a noite não lhe diz nada. Os pensamentos de nôvo se avolumam, recompõem as mesmas imagens de horror. O tormento de lembranças lhe vem mais uma vez em sucessão monótona: são os mesmos rostos de olhos repuxados, a mesma voz dissonante dos guardas, o mesmo cheiro de sangue. Pensa no sacrifício inútil que cinco de seus companheiros já completaram. Melvin C. Roberts está pensando na morte. São onze horas a noite de 9 de agôsto.

Seu corpo foi encontrado no dia seguinte sobre a cama – um vidro de pílulas sedativas a seu lado, completamente vazio. Escapou a todas as formas de morte violenta nas mãos dos japonêses e procurou a maneira mais tranqüila e confortável de morrer. Segundo afirmou no seu depoimento o milionário Vanderbilt, o rapaz vivia ultimamente num constante estado de depressão e se queixava de horríveis sonhos com seu internamento, as torturas que sofreu.
Encerrando os trabalhos, o comité de investigação no Reno resolveu considerar a sua morte como sendo “mais uma honrosa perda de guerra”. Com isso autorizam o esquecimento em tôrno de seu nome.

Mas Melvin C. Roberts não será esquecido, como os outros cinco. E não será, simplesmente porque sabemos agora que ainda restam dois.

Que terá sido dêsses dois? É possível que um já tenha esquecido o juramento feito, esquecido seus sete companheiros, e num bangalô em Miami Beach ou numa pequena fazenda do Texas, já casado e com filhos, procure esquecer também o mundo e seus problemas: esta foi a maneira que escolheu de suicidar-se.
Mas, e o outro? Neste último é que está, sem que o saibamos, o nosso mêdo e a nossa esperança. Vejo-o lendo àvidamente os jornais de hoje em Nova Orleãs, São Francisco, Detroit ou em Bunn, na Carolina do Norte. Vejo-o passando ao meu lado nas ruas de Nova Iorque e o desconheço. Ninguém sabe quem ele é. Ninguém sabe que o destino do mundo se subordinou ao destino dêste homem. Poucos conhecem esse veterano distraído, com o olhar vazio dos prisioneiros. No seu andar um tanto incerto não há nada revelando que êle caminha a passos firmes para a morte. Indiferentes a êle, os políticos continuam se reunindo em assembléia, para decidir a sorte do mundo. E a sorte do mundo está hoje dependendo apenas da vida dêsse homem. Mas quem será êle? Ninguém sabe ou se preocupa em saber. Êle vai andando em meio à multidão como um autômato, anônimo e despercebido. Seus dedos deslizam pelo bôlso do paletó, acariciam lentamente o revólver, lembrança ainda da guerra, e esperam.

Numa esquina qualquer de uma cidade qualquer, um homem espia passivamente o movimento ao seu redor e espera o instante de condenar o mundo com a sua morte. Seus dedos apertam a arma, o braço se ergue, e ela se volta em direção ao peito magro onde o coração se maltrata. Tenho ainda uma violenta esperança de que alguma coisa aconteça, algum milagre impeça a morte dêsse homem.

Fernando Sabino.

A Imoralidade da Distinta Concorrência

No Livro II da República, Platão conta a história do Anel de Giges: em resumo, Giges, um pastor, encontra um anel que lhe dá o poder de ficar invisível. Ao descobrir-se dono dessa habilidade, ele seduz a rainha, mata o rei e toma seu lugar. A ideia de Platão com essa história é de que o ser humano é naturalmente vil e corrupto e que toda a sua moralidade consiste em não desejar a punição decorrente de atos que quebrem as leis. Diante da certeza da impunidade, o ser humano não pensará duas vezes antes de se apropriar dos bens alheios, mesmo que à custa da vida de seus semelhantes. Caso vá contra esta máxima e, favorecida com tal capacidade, a pessoa decida servir à humanidade, em vez de conquistá-la, será desprezada por seus pares por sua estupidez e fraqueza.

Diversos outros pensadores, de lá para cá, abordaram essa mesma questão. Alguns defendendo que o ser humano é por natureza bom, a sociedade o corrompe (Rousseau, em oposição à ideia de Platão), outros concordando que a humanidade é mesmo cruel e é algoz de si mesma (Thomas Hobbes, ao afirmar que o homem é o lobo do homem).

Pois bem. Existe um personagem que é o exato oposto de Giges: dotado de plenos poderes, quase impossível de ser derrotado pela humanidade, ciente de sua superioridade em todos os aspectos, ainda assim ele se dedica a servir à sociedade em vez de tomar suas rédeas e liderá-la. E, também ao contrário do que Platão considerou que aconteceria com alguém capaz de cometer qualquer ato impunemente, porém moral apesar disso, a humanidade não o odeia, não o despreza, não o rejeita: ela o adora. Falo do Superman.

Superman é visto como um símbolo, dentro e fora do cânone da DC Comics. Chega ao ponto de ser uma alegoria (muito pouco sutil) de Jesus Cristo, em especial nos filmes. Veja as entrevistas com os produtores e atores que trabalharam nos filmes do escoteirão e fica clara essa impressão de que a função do personagem é demonstrar não o auge da capacidade humana, pois trata-se de um alien, mas tudo aquilo que, de um ponto de vista moral, podemos ser, graças à influência de seus pais adotivos, o casal de fazendeiros Jonathan e Martha Kent, sal da terra, trabalhadores, honestos, justos, corretos, dignos, generosos, etc.

O curioso é que a própria DC Comics não acredita nisso.

A DC Comics considera o Superman uma farsa. A editora que detém os direitos do personagem não acredita em sua moralidade, considera-o influenciável, moral por ocasião e potencialmente tirânico. Existem pelo menos três histórias nas quais o desapego do Superman pela humanidade fica bem claro: Batman – O Cavaleiro das Trevas; Reino do Amanhã e, a mais recente, e minha favorita para ilustrar esta noção, Injustice – Gods Among Us.

Em Batman – O Cavaleiro das Trevas, temos uma visão pessimista do que aconteceria no mundo se o cenário americano dos anos 80 se estendesse por mais uma ou duas décadas (recessão, guerra fria, criminalidade, gangues juvenis, Ronald Reagan presidente, neoliberalismo, etc.). Neste cenário, os heróis foram coagidos a se aposentar, por uma razão ou por outra, e apenas o Superman tem sanção para agir, mas sob ordens de Reagan, que permanece presidente. A imprensa, por sua vez, é proibida de referir-se ao herói, ele não faz aparições públicas. É como se não existisse. Opera em segredo, nas sombras, impondo ao mundo a política externa norte-americana (aquela maravilha que estamos acostumados a ver). O caráter ordeiro do personagem, dessa forma, é elevado à enésima potência: seu entendimento de ordem não parte de uma reflexão moral ou de considerações éticas, é apenas o respeito às leis, que, pelo que a própria história (e a História) nos mostra podem ser injustas ao ponto de corroborarem atrocidades (sequer citarei os nazistas, neste caso: fico com o Congo do Rei Leopoldo II, da Bélgica).

Em Reino do Amanhã, a descrença da DC Comics em seu maior ícone fica ainda mais clara: em meados da década de 90, o Coringa comete um atentado terrorista no Planeta Diário, causando a morte de todas as pessoas no prédio (inclusive Lois Lane, par romântico do herói). Durante a prisão do vilão, Magog, um herói da nova geração, assassina o arqui-inimigo do Batman. A opinião pública apóia a atitude, para horror de Superman. Diante de uma sociedade que passa a desprezar seu código moral, preferindo os heróis que não apresentam tal escrúpulo, ele desiste da humanidade. Muda-se em definitivo para a Fortaleza da Solidão, no meio do ártico, e passa a viver lá como um fazendeiro qualquer, plantando, colhendo e criando animais no ambiente artificial de sua base remota. Dez anos depois, a Mulher Maravilha vai até lá pedir sua ajuda para colocar a nova geração de heróis nos eixos depois que o mesmo Magog, numa luta com outros metahumanos, causa uma explosão nuclear que dizima todo o centro-oeste americano. Superman então retorna, passa a impor aos outros heróis sua noção de moralidade e prende os que se recusam a segui-lo em um Gulag no deserto atômico criado no coração dos Estados Unidos.

Superman full pistola

 

E em Injustice – Gods Among Us a história é ainda mais representativa: Lois Lane engravida, Superman fica eufórico com a possibilidade de ser pai, até que o Coringa (novamente) prepara uma espécie de droga que faz com que o herói veja em sua mulher grávida a figura de Apocalipse, um de seus mais perigosos inimigos. Ao atacar Lois, Superman a assassina. Ligada aos batimentos cardíacos da mulher, entretanto, havia uma ogiva nuclear em Metrópolis. Assim que o coração dela para de bater, a bomba explode, matando toda a população de Metrópolis. Tomado pela culpa, o herói mata o Coringa e adota uma postura de tolerância zero com a criminalidade e a violência da humanidade, tornando-se um ditador impiedoso.

Nesses três cenários há uma constante contraposição ao Superman: o Batman.

Se o Superman cede à pressão política, social ou ao luto, o Batman permanece fiel a seus princípios, senhor de sua moral. Nos três casos sua obsessão pela justiça o conduz inevitavelmente ao confronto com seu (até então) amigo.

Algo também fica claro nos três cenários: salvo exceções (poucas), os outros heróis da DC seguem o Superman sem pestanejar. Em O Cavaleiro das Trevas eles se aposentam e somem do mapa (não se sabe sob que nível de coerção). Em Reino do Amanhã a maioria dos personagens da velha guarda (Flash, Poderosa, Mulher Maravilha, Lanterna Verde, Homem Gavião, Robin, etc.) retorna à ativa após o retorno do Superman e passa a segui-lo como o líder que estavam acostumados a ver, mostrando zero preocupação com o ato de aprisionar antigos companheiros de luta em um Gulag no meio de um deserto radioativo. E em Injustice – Gods Among Us o mito do anel de Giges parece ter dado o tom da história: a partir do momento em que o mais poderoso dentre eles passa a cometer atrocidades (ainda que em nome de “um bem maior”), a maior parte dos outros heróis adere ao “Regime” e age de forma igualmente despótica (os que discordam são executados ou precisam se esconder do alienígena, o que é, em si, um desafio, considerando que o personagem é quase onisciente, onipresente e onipotente).

Ou seja, o Batman é um dos poucos personagens que a DC considera, de fato, moral, correto, incorruptível, independentemente de suas probabilidades de vitória. O Superman nada mais é do que um alienígena todo-poderoso sujeito a duas amarras: seus pais e Lois Lane. Tirem dele esses lastros e a diversão começa. Do grande símbolo de justiça e verdade que dizia representar, o alienígena se torna uma força desregulada, manipulável e/ou desbragadamente tirânica. Lex Luthor estava certo o tempo todo: o Superman é um risco a ser combatido.

Por outro lado, temos a Marvel…

A grande diferença entre a Marvel e a DC é que enquanto os personagens da DC são semideuses idolatrados pelos habitantes de suas cidades (e praticamente cada um tem uma: o Flash tem Central City, o Superman tem Metrópolis, o Batman tem Gotham City, o Lanterna Verde tem Coast City, o Arqueiro Verde tem Star City, e por aí vai), amados pela opinião pública, tidos como absolutamente benévolos e justos, na Marvel a banda toca de forma bem diferente. A maioria dos personagens vive em Nova Iorque e não poucos são hostilizados abertamente pela população (Homem-Aranha e X-Men, por exemplo). Mesmo os Vingadores não estão livres do escárnio da mídia, do escrutínio exagerado da imprensa, dos boatos nos tabloides. Os Super-Heróis da Marvel são tratados como nós tratamos nossas celebridades: pessoas que admiramos com um rancor invejoso, um desprezo mal disfarçado. Por estarem acima de nós, são alvos de nossa crueldade e pouco caso. Nos divertimos assistindo e caçoando de suas quedas e falhas morais. A minissérie Marvels deixa tudo isso bem claro, é essencialmente sobre o que a história trata, com o fotógrafo Phil Sheldon testemunhando o surgimento das “Maravilhas”, como ele se refere aos super-heróis, e o tratamento que a sociedade dá a eles.

Ainda assim, apesar de tudo isso, permanecem fazendo o que consideram correto. O Capitão América, contraparte do Superman no universo Marvel em termos de representação simbólica, apresenta muito mais rigor e bom-senso em sua forma de proceder. Diante de uma lei que considerou injusta, não titubeou em opor-se ao governo americano e em lutar inclusive contra velhos amigos, conforme demonstrado em Guerra Civil. O Homem-Aranha e os X-Men, maiores vítimas da injustiça e do preconceito do cidadão comum do universo Marvel, ainda assim não se recusam a se apresentar ao dever quando percebem-se necessários. São a essência do Imperativo Categórico e da Moral Kantiana: agem de acordo com o DEVER, com base em princípios que consideram que deveriam ser universais. Se o público vai aplaudir ou não, se a lei aprova ou desaprova, nada disso interessa. Há uma obrigação moral, tudo mais é irrelevante.

Já na DC Comics, o freio da maioria dos personagens com super-poderes é o Superman. Não agem pelo dever, mas sob o risco de, fugindo ao dever e colocando os próprios interesses acima do bem comum, serem coagidos pelo companheiro – mais poderoso, portanto capaz de subjugá-los – a se sujeitar aos critérios (do companheiro) de lei e de justiça. A partir do momento em que o herói que mantém os outros heróis na linha resolve abandonar seu dever, ignorar suas responsabilidades ou, pior ainda, impor-se pela força, todo mundo passa a agir como bem quer, em especial a Mulher Maravilha, que se torna uma sanguinária belicosa. Há inclusive outro exemplo que demonstra que é assim que a DC Comics a enxerga: a versão da amazona na história Flashpoint Paradox, na qual ela corta a cabeça da mulher do Aquaman numa luta e depois declara guerra aos atlantes, passando por cima da humanidade inteira (o Superman, nessa história, “não existe”).

Esta é uma das razões pelas quais, para mim, o universo Marvel é superior ao universo DC: a DC tenta ao máximo aproximar seus personagens de semideuses, e ela mesma não acredita na validade desta aproximação. Ao desumaniza-los, exagerando seus poderes e habilidades, torna-se inevitável jogá-los em descrédito, e a própria editora cumpre esse papel, sem que os fãs precisem aventar essas possibilidades por conta própria.

Com exceção, é claro, do Batman. Que está na editora errada.

(Para a sorte da humanidade da DC Comics. E para azar do Superman, que sempre terá um bilionário paranoico, obsessivo e favorecido pelos roteiristas disposto a lhe aplicar um corretivo.)