Newsletter 01

Em 2019 comecei a enviar uma Newsletter que, tal e qual este blog, carece de regularidade. Sai quando tenho algo a dizer ou tenho a disposição para dizer algo (o que não é a mesma coisa, que fique bem claro).

A cada texto que publicar lá, trarei outro para cá. Hoje saiu o de número 18. Publico abaixo o de número 1.

Acredito que todo mundo já tenha feito aquela brincadeira de repetir uma palavra trivial diversas vezes, até que ela se quebra em uma sequência de fonemas estranhos, em um conjunto cru de sons, vazios de significado, e fica claro que é apenas isso: uns grunhidos aos quais nós, coletivamente, atribuímos sentido. Repetido à exaustão, este some e o significante se apresenta nu.

É um passo linguístico para trás. Mas, além disso, é um passo evolutivo para trás. Você reconhece seus grunhidos como aquilo que são. Não são diferentes de um miado ou de um latido só por apresentarem maior variação de vocalização. O que te diferencia dos outros animais é que suas manifestações sonoras permitem a apresentação de abstrações e não são, obrigatoriamente, fruto dos seus sentimentos e/ou necessidades mais básicas. Mas isso é tudo. Em termos básicos você é só mais um animal vibrando uma musculatura específica na laringe para se comunicar com outros da sua espécie.

…este sou eu começando esta newsletter chamando os leitores de animais. Juro que não é por mal. Tenho pensado muito no significado das coisas. Acho que estou numa fase existencialista (outra maneira de dizer “eu ando na merda” sem apelar de todo pra esse coitadismo).

A culpa (quero botar a culpa em alguém) é do Karl Ove Knausgard. Desde que li A Morte do Pai e identifiquei a estreita ligação que ele estabelece entre as pinturas que admira e a literatura, percebi que meu velho preconceito com o conceito de “semiótica” me tornou aleijado para determinadas análises e interpretações que são fundamentais a qualquer discurso, especialmente tratando-se de alguém que se propõe a escrever. Coisa à qual ainda me proponho, mas continuo achando que não deveria.

Essa minha resistência à vontade de escrever já foi mais por mim, por insatisfação com o produto dos meus esforços, com o resultado do que eu tentava rabiscar. Agora não tanto. Ou não apenas, na verdade. Agora também envolve enxergar a tonelada de informações às quais somos submetidos todos os dias. Existe para todos os gostos: fatalista, determinista, utilitarista, dadaísta, até… Escolha o que vai deixar seu cérebro mais confortável e vá em frente. Ao menos enquanto ainda existe um resquício de direito de escolha.

Sim, porque o direito de escolha é cada vez menor. Falei sobre isso no blog há alguns meses: nossa possibilidade real de escolha vem se tornando mais e mais reduzida, o que equivale a dizer que é cada vez maior nossa ilusão de que uma escolha existe. Haveria alguma espécie de revolta se fosse de outro modo, se esses filtros e bloqueios fossem declarados. Não são. São escamoteados, justificados por razões legais (que nada mais são do que argumentos de um ponto de vista financeiro). Ou atribuem a limitação a uma abstração: “o algoritmo”. O Algoritmo escolhe o que você verá na sua timeline do Facebook. O Algoritmo escolhe o que você verá na sua timeline do Instagram. Quanto tempo até o Algoritmo passar a escolher além disso?

Quanto tempo até o Algoritmo perguntar se você está feliz, cidadão?

Até chegarmos a isso, vivemos sob essa enxurrada de significados, significantes, textos, memes, vídeos, podcasts… é gente demais dizendo coisa demais. Precisamos de mais uma voz nessa algazarra? Preciso adicionar minha voz a essa azáfama? Em um ambiente de (dedo no cu e) gritaria, não é mais esperto ficar em silêncio?

Pode ser um receio válido, pode ser só eu dando à minha indolência uma roupagem de preocupação social (não nego, mas não confirmo). Mas é uma preocupação que me ocorre, especialmente na era das “fake news”, “pós verdade”, chame como quiser. É gente demais falando merda, quem me garante que eu não sou só mais um entrando no coro? A afirmação imediata que me vem à mente é “mas é gente demais mentindo e alguém precisa estar por aí falando a verdade”, e é puro ego: então agora o arauto da verdade sou eu? Daí caímos em Tabacaria: há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

De todo modo, recuso imediatamente essa proposição megalomaníaca. Não me levo tão a sério, e ninguém deveria. Não é que eu ache que minhas interpretações dos fatos e das coisas são tão válidas quanto a de qualquer um, óbvio. Existe gente burra e existe gente mau caráter por aí. Eu posso até errar, mas nunca por incapacidade ou com a intenção de desinformar (não que seja atenuante; imperícia, imprudência ou negligência nunca são, de acordo com nosso código penal).

Mesmo assim. Mesmo assim.

Daí a imagem que ilustra este post. A Escrita Assêmica (Asemic Writing), movimento artístico que eu desconhecia até poucas semanas atrás, trata de uma forma de “escrita de semântica aberta”, garatujas que podem, com alguma dedicação e esforço por parte de quem as observa, serem transformadas em linguagem, mas os símbolos não têm valor nenhum atribuído a priori. A determinação ou não de significados fica por conta do observador.

A técnica não é nova. Já era utilizada por um chinês por volta do ano 800 DC. Mas só foi nomeada em 1997. E vem ganhando notoriedade (ao menos de acordo com o Google Trends). Em uma era de informações em profusão, optar deliberadamente pela ausência de sentido não me ocorre tanto como uma forma de universalizar a comunicação, mas como um gesto de protesto.

Por uma questão de índole, talvez, essa perspectiva me agrada mais.
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  Pensei em comentar aqui sobre um vídeo do Pondé. Na expectativa de entrar no assunto sem, no entanto, chegar abrindo com ele, me desviei e fui tratar de outras coisas. Há também um texto da Cora Ronai a respeito do qual quero falar. Talvez fiquem pra edições futuras. Assim terei sobre o que escrever.
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A abordagem das questões (talquei?) nestes e-mails será, via de regra, assim: superficial. Talvez eu não vá a fundo por preguiça. Talvez porque não tenha muito fundo pra ir e eu esteja extraindo leite de pedra.

Talvez por incompetência da minha parte. Um homem precisa saber reconhecer suas limitações.

Jamais saberemos (desconfio que todos nós já sabemos).

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